quinta-feira, 7 de junho de 2007

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.



Carlos Drummond de Andrade

Sem Budismo

Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero, Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.


Paulo Leminski

Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.

Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.

A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?


Paulo Leminski

Carrego o peso da lua

Carrego o peso da lua,
Três paixões mal curadas,
Um saara de páginas,
Essa infinita madrugada.
Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego.



Paulo Leminski

O assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjunção.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido na sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.


Paulo Leminski

Ode ao gato


Os animais foram

imperfeitos,

compridos de rabo, tristes

de cabeça.

Pouco a pouco se foram

compondo,

fazendo-se paisagem,

adquirindo pintas, graça, vôo.

O gato,

só o gato apareceu completo

e orgulhoso:

nasceu completamente terminado,

anda sozinho e sabe o que quer.


O homem quer ser peixe e pássaro,

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato

do bigode ao rabo,

do pressentimento ao rato vivo,

da noite até seus olhos de ouro.


Não há unidade

como ele,

não tem

a lua nem a flor

tal contextura:

é uma só coisa

como o sol ou o topázio,

e a elástica linha em seu contorno

firme e sutil é como

a linha da proa de um navio.

Seus olhos amarelos

deixaram uma só

ranhura

para jogar as moedas da noite.


Oh pequeno

imperador sem orbe,

conquistador sem pátria,

mínimo tigre de salão, nupcial

sultão do céu

das telhas eróticas,

o vento do amor

na intempérie

reclamas

quando passas

e pousas

quatro pés delicados

no solo,

cheirando,

desconfiando

de todo o terrestre,

porque tudo

é imundo

para o imaculado pé do gato.


Oh fera independente

da casa, arrogante

vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico

e alheio,

profundíssimo gato,

polícia secreta

dos quartos,

insígnia

de um

desaparecido veludo,

seguramente não há

enigma

na tua maneira,

talvez não sejas mistério,

todo o mundo sabe de ti e pertences

ao habitante menos misterioso,

talvez todos o acreditem,

todos se acreditem donos,

proprietários, tios

de gatos, companheiros,

colegas,

discípulos ou amigos

do seu gato.


Eu não.

Eu não subscrevo.

Eu não conheço ao gato.

Tudo sei, a vida e seu arquipélago,

o mar e a cidade incalculável,

a botânica,

o gineceu com seus extravios,

o pôr e o menos da matemática,

os funis vulcânicos do mundo,

a casaca irreal do crocodilo,

a bondade ignorada do bombeiro,

o atavismo azul do sacerdote,

mas não posso decifrar um gato.

Minha razão resvalou na sua indiferença,

o seu olho tem números de puro.




Pablo Neruda
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.



Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.

Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando-te te rogo,
e a medida do meu amor viageiro,
é não te ver e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,

nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.



Nega-me o pão,
o ar, a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.




Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.




Pablo Neruda

Bem-vindo Aonde Você Esteja

Talvez todos sejamos diferentes, mas ainda somos iguais
Todos temos o sangue do Édem correndo em nossas veias
Sei que às vezes é difícil para você ver
Você fica preso entre quem você é e quem gostaria ser

Se você se sente sozinho e perdido e precisa de um amigo
Lembre-se que todo novo começo é o fim do início de alguém

Bem vindo onde quer que esteja
Esta é sua vida, você conseguiu até aqui
Bem vindo, você tem que acreditar
Que aqui e agora
É onde exatamente você deveria estar
Bem vindo onde quer que esteja

Quando todos estão por dentro, e você é deixado para fora
E você sente que está se afogando na sombra da dúvida
Todo mundo é um milagre ao seu modo
Apenas ouça você mesmo, não o que as outras pessoas dizem

Quando parece que está perdido, sozinho e para baixo
Lembre-se que todos são diferentes, apenas dê uma olhada ao seu redor

Seja quem você quer ser
Seja quem você é
Todos são heróis
Todos são estrelas

Quando você quiser desistir e seu coração estiver prestes a se partir
Lembre-se que você é perfeito, Deus não comete erros
Bem vindo a onde quer que esteja
Esta é sua vida, você conseguiu até agora
E eu digo, seja bem vindo…
Bem vindo a onde quer que esteja
Esta é sua vida, você conseguiu até agora
Eu digo, seja bem vindo…
Bem vindo, você tem que acreditar
Que aqui, agora
Bem vindo...


Bon Jovi - Welcome to wherever you are

Sempre

Este Romeu está sangrando
Mas você não pode ver o seu sangue
São apenas alguns sentimentos
Que este velho sujeito jogou fora

Tem chovido desde que você me deixou
Agora estou me afogando no dilúvio
Você sabe que sempre fui um lutador
Mas sem você, eu desisto

Agora não posso cantar uma canção de amor
Como deve ser cantada
Bem, acho que não sou mais tão bom
Mas querida, sou apenas eu

Sim, e eu te amarei, querida, sempre
E estarei ao seu lado por toda a eternidade sempre
Eu estarei lá até as estrelas deixarem de brilhar
Até os céus explodirem e as palavras não rimarem
E sei que quando eu morrer, você estará no meu pensamento
E eu te amarei sempre

Agora as fotos que você deixou para trás
São apenas lembranças de uma vida diferente
Algumas que nos fizeram rir
Algumas que nos fizeram chorar
Uma que você fez ter que dizer adeus

O que eu não daria para passar meus dedos pelos seus cabelos
Tocar em seus lábios, abraça-la apertado
Quando você dizer suas preces, tente entender
que eu cometi erros, sou apenas um homem

Quando ele abraçar você
Quando ele puxar você para perto
Quando ele disser as palavras
Que você precisa ouvir
Eu queria ser ele porque aquelas palavras são minhas
Para dizer a você até o fim dos tempos

Sim, e eu te amarei, querida, sempre
E estarei ao seu lado por toda a eternidade sempre
Se você me dissesse para chorar por você, eu poderia
Se você me dissesse para morrer por você, eu morreria
Olhe para o meu rostoNão há preço que eu não pagaria
Para dizer estas palavras a você

Bem, não há sorte nestes dados viciados
Mas querida, se você me der apenas mais uma chance
Nós podemos refazer nossos antigos sonhos e nossas antigas vidas
Encontraremos um lugar onde o sol ainda brilha

Sim, e eu te amarei, querida, sempre
E estarei ao seu lado por toda a eternidade sempre
Eu estarei lá até as estrelas deixarem de brilhar
Até os céus explodirem e as palavras não rimarem
E sei que quando eu morrer, você estará em meu pensamento
E eu te amarei, querida, sempre



Jon Bon Jovi - Always

Soneto da separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amor próximo distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


Vinicius de Moraes

Desalento

Sim,
vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim

Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar

Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos


Vinicius de Moraes

O Pingüim

Bom-dia, Pingüim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim.
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu de jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.



Vinicius de Moraes

O Relógio

Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Tic-tac . . .


Vinicius de Moraes

Valsinha

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz


Vinicius de Moraes

Soneto da devoção

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!


Vinicius de Moraes
Quem é homem de bem,
não trai
O amor que lhe quer
seu bem
Quem diz muito que vai
não vai
Assim como não vai
não vem
Quem de dentro de si
não sai
Vai morrer sem amar
ninguém
O dinheiro de quem
não dá
é o trabalho de quem
não tem
Capoeira que é bom
não cai
E se um dia ele cai
Cai bem!


Vinicius de Moraes

Insensatez

Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, por que você foi tão fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado


Vinicius de Moraes

Soneto de fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Que vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes

Hora Íntima

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: - Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: - Rei morto, rei posto. . .
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: - Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cais
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: - Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores ?


Vinicius de Moraes

Soneto de amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Vinicius de Moraes

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar. Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados.

Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.


Vinicius de Moraes
Eu sei e você sabe
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham a você.

Assim como o Oceano, só é belo com o luar
Assim como a Canção, só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem, só acontece se chover
Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor, não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você!


Vinicius de Moraes
A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.



Vinicius de Moraes

Aviso

Esqueça as soluções, faça outros planos,
Mas lembre-se, a linha não precisa ser reta.
Feche os olhos, mantenha os ouvidos abertos,
Mas entenda, compreender não significa aceitar.
Aceite o beijo sem pudor, o toque sem rancor,
Mas por favor lembre-se, aquele que alimenta também tem boca.
Não desperdice o momento, não tenha medo do fim,
E não se esqueça, o infinito é composto de finitos.


[Cassiano Pinheiro]

Para que serve uma relação?

Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado.

Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo enquanto você prepara um omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se incomode com isso.

Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e quase sempre, estimular você a ser do jeito que é,de cara lavada e bonita a seu modo.

Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.

Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem o corpo um do outro quando o cobertor cair.

Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro no médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.

se entendêssemos assim, não haveria tantas pessoas sozinhas....



Dr Drauzio Varela

O Elogio do Vício

Admiro os viciados. Num mundo em que está toda a gente à espera de uma catástrofe total e aleatória ou de uma doença súbita qualquer, o viciado tem o conforto de saber aquilo que quase de certeza estará à sua espera ao virar da esquina. Adquiriu algum controlo sobre o seu destino final e o vício faz com que a causa da sua morte não seja uma completa surpresa. De certo modo, ser um viciado é uma coisa bastante proactivista. Um bom vício retira à morte a suposição. Existe mesmo uma coisa que é planear a tua fuga.

Chuck Palahniuk, in "Asfixia

Sobre as palavras

Andei perdendo palavras por aí. Talvez por falar em excesso elas me faltem agora. As que saíram aos gritos duvido que voltem. Escaparam e deixaram vítimas durante a fuga. Uma pena. Mas em esforço de guerra dizem que perdas são justificáveis. Nunca acreditei muito nisso.

Andei perdendo palavras por aí. Talvez por ficar em silêncio elas me sobrem agora. E por serem excesso ocuparam o espaço antes reservado ao agrupamento ordenado delas. O crescimento desordenado de palavras é mais perigoso. Jamais pensei na possibilidade de um motim de palavras.

Andei perdendo palavras por aí. Das soltas e guardadas. Algumas entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Outras entupiram narinas e muitas desceram pelos olhos.

Ainda ontem me olhei no espelho e vi que engordei. Ando comendo palavras saturadas. Um perigo. Preciso perder peso, perder palavras para reencontrá-las.


Sergio Fonseca

domingo, 3 de junho de 2007

Sujeito Indireto


Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.



Paulo Leminski

Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América.



Paulo Leminski

Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.



Paulo Leminski

Desmontando o Frevo

desmontando
o brinquedo.
eu descobri
que o frevo
tem muito a ver
com certo
jeito mestiço de ser
um jeito misto
de querer
isto e aquilo
sem nunca estar tranquilo
com aquilo
nem com isto

de ser meio
e meio ser
sem deixar
de ser inteiro
e nem por isso
desistir
de ser completo
mistério
eu quero
ser o janeiro
a chegar
em fevereiro
fazendo o frevo
que eu quero
chegar na frente
em primeiro



Paulo Leminski
uma carta uma brasa através
por dentro do texto
nuvem cheia da minha chuva
cruza o deserto por mim
a montanha caminha
o mar entre os dois
uma sílaba um soluço
um sim um não um ai
sinais dizendo nós
quando não estamos mais



Paulo Leminski

Nem toda hora

nem toda hora
é obra
nemtoda obra
é prima
algumas são mães
outras irmãs
algumas
clima



Paulo Leminski

as coisas estão pretas

uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras



Paulo Leminski

Amor, então,

Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.



Paulo Leminski

Ascenção apogeu e queda

ascenção apogeu e queda da vida paixão
e morte
do poeta enquanto ser que chora enquanto
chove lá fora e alguém canta
a última esperança da luz e pegar o primeiro trem
para muito além das serras que azulam no
horizonte
e o separam da aurora da sua vida



Paulo Leminski

Cansei da frase polida

cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas



Paulo Leminski

O pauloleminski

o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique




Paulo Leminski

Ver

ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor
só doer
não é dor
delícia
de experimentador


Paulo Leminski

Moinho de versos

moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia



Paulo Leminski

Um dia

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um eluárd um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores



Paulo Leminski

Quatro dias sem te ver

quatro dias sem te ver

e não mudaste nada

falta açúcar na limonada

me perdi da minha namorada

nadei nadei e não dei em nada

sempre o mesmo poeta de bosta
perdendo tempo com a humanidade



Paulo Leminski

O novo

o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol

apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo



Paulo Leminski

Coração

coração
PRA CIMA
escrito em baixo
FRÁGIL



Paulo Leminski

Nada que o sol

nada que o sol
não explique

tudo que a lua
mais chique

não tem chuva
que desbote essa flor


Paulo Leminski

Sim

sim
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas

não quis a prosa
apenas a idéia
uma idéia de prosa
em esperma de trova
um gozo
uma gosma

uma poesia porosa



Paulo Leminski

Quando eu tiver setenta anos

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência



Paulo Leminski

Podem ficar com a realidade

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano



Paulo Leminski

Eu queria tanto

eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois



Paulo Leminski

Para a liberdade e luta

me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão



Paulo Leminski
desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado
[aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo


Paulo Leminski

Parem

parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta



Paulo Leminski

Aço e Flor

Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.



Paulo Leminski

Já me matei faz muito tempo

já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhore o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma



Paulo Leminski

Lembrem de mim

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça


Paulo Leminski

Rosa Rilke Raimundo Correia

Uma pálpebra,
Mais uma, mais outras,
Enfim, dezenas
De pálpebras sobre pálpebras
Tentando fazer
Das minhas trevas
Alguma coisa a mais
Que lágrimas


Paulo Leminski

Não discuto

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino



Paulo Leminski

Se

se
nem
for
terra

se
trans
for
mar



Paulo Leminski

Nada me demove

nada me demove
ainda vou ser
o pai dos irmãos Karamazov


Paulo Leminski

Ali

ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece


Paulo Leminski

Acordei bemol

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido


Paulo Leminski

Distâncias Mínimas

um texto morcego
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?


Paulo Leminski

Insenso fosse música

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além



Paulo Leminski

Eu

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha



Paulo Leminski

Bem lá no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.



Paulo Leminski

Apagar-me

Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.


Paulo Leminski

De colchão em colchão

de colchão em colchão
chego à conclusão
meu lar é no chão


Paulo Leminski

A noite - enorme

a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome


Paulo Leminski

Esta vida é uma viagem

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem


Paulo Leminski

Amar é um elo

amar é um elo
entre o azul
e o amarelo


Paulo Leminski

Saber é pouco

saber é pouco
como é que a água do mar
entra dentro do coco?


Paulo Leminski

Malarmmé Bashô

um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço


Paulo Leminski

Amor bastante

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante


Paulo Leminski

Lápide 2

epitáfio para a alma

aqui jaz um artista
mestre em desastres

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte

deus tenha pena
dos seus disfarces


Paulo Leminski

Lápide 1

epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.


Paulo Leminski

Abaixo o além

de dia
céu com nuvens
ou céu sem

de noite
não tendo nuvens
estrela
sempre tem

quem me dera
um céu vazio
azul isento
de sentimento.



Paulo Leminski

O bicho alfabeto

o bicho alfabeto
tem vinte e três patas
ou quase

por onde ele passa
nascem palavras
e frases

com frases
se fazem asas
palavras
o vento leve

o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve


Paulo Leminski

Profissão de febre

quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo,
chovo,
assobio no vento,
daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento


Paulo Leminski

Donna mi priega 88

se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios

no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?

a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cindo mil sentidos
está livre de mal-entendidos?


Paulo Leminski

Erra uma vez

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez


Paulo Leminski

Você está tão longe

você está tão longe
que às vezes penso
que nem existo

nem fale em amor
que amor é isto


Paulo Leminski

Um bom poema

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto


Paulo Leminski

Merda e outro

Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam pobres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da pessoa amada.


Paulo Leminski

Que se foda...

– que tudo se foda,
disse ela,
e se fodeu toda


Paulo Leminski

Sossegue coração

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa


Paulo Leminski

A carta pluma

a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que a bruma

uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos se
se faz essa história
que se chama eu e você


Paulo Leminski

Asas e azares

Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.


Paulo Leminski

Além Alma (uma grama depois)

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?


Paulo Leminski
eu ontem tive a impressão
que deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos

quem sou eu pra falar com deus?
ele que cuide dos seus assuntos
eu cuido dos meus


Paulo Leminski